quinta-feira, 8 de agosto de 2013

Não se pode compreender o eterno com uma mente produto do tempo

Pergunta: Pode o passado dissolver-se repentinamente, ou é necessário, invariavelmente, um certo tempo?

Krishnamurti: Nós somos o resultado do passado. Nosso pensamento se baseia no dia de ontem e em muitos milhares de dias passados. Somos o resultado do tempo, e todas as nossas reações, todas as nossas atitudes no presente, representam o efeito cumulativo de muitos milhares de momentos, incidentes e experiências. Por consequência, para a maioria de nós, o passado é o presente, e isso se faz um fato inegável. Vocês — seus pensamentos, suas ações, suas reações — são o resultado do passado. Ora bem, o interrogante deseja saber se o passado pode ser apagado imediatamente, isto é, não dentro de certo tempo, porém imediatamente; ou esse passado cumulativo exige algum tempo, até que a mente esteja livre do presente? É importante que se compreenda a pergunta. Isto é, já que cada um de nós é resultado do passado, com um fundo de inumeráveis influências, a variarem e a se modificarem constantemente, é possível apagar-se esse fundo sem se passar pelo processo do tempo? Está claro isso? A pergunta está clara, sem dúvida. 

Pois bem: o que é o passado? O que entendemos por passado? Não nos referimos, naturalmente, ao passado cronológico, ao segundo que precedeu, não nos referimos a isso, que é coisa definidamente acabada. Referimos-nos, é claro, é claro, àsexperiências acumuladas, às reações, lembranças, tradições e conhecimentos acumulados, ao nosso depósito subconsciente de inumeráveis pensamentos, sentimentos, influências e reações. Com uma tal bagagem não é possível compreender a realidade, porquanto, necessariamente, a realidade não pertence ao tempo: ela é eterna. Por isso, não se pode compreender o eterno com uma mente que é produto do tempo. O interrogante deseja saber se é possível libertar-se a mente, ou se é possível que a mente, que é resultado do tempo, deixe de existir de súbito; ou se é necessário que se proceda a uma longa série de exames e análises para, desse modo, libertar-se a mente de suas acumulações. Vocês percebem a dificuldade da questão.

Ora, a mente é o nosso cabedal de ideias e experiências; a mente é resultado do tempo; a mente é o passado, a mente não é o futuro. Ela pode projetar-se no futuro; e a mente serve-se do presente como uma passagem para futuro; por conseguinte, o que quer que faça, seja qual for a sua atividade — sua atividade futura, sua atividade presente, sua atividade passada — ela está sempre presa na rede do tempo. É possível que a mente deixe de existir de todo, isto é, que o processo do pensamento termine? Ora, é bem claro que há muitas camadas a constituírem a mente; o que chamamos consciência tem muitas camadas, cada uma delas relacionada com a outra, cada uma dependente da outra e atuando reciprocamente uma sobre a outra; e o total de nossa consciência não é apenas o processo de experimentar, mas também o de dar nome, designar, e, ainda, armazenar na memória. Tal é o processo completo da consciência, não é? Ou acham tudo isso difícil demais? 

Quando falamos de consciência, não nos referimos ao processo de experimentar, de dar nome ou designação à experiência e guardá-la, dessa maneira na memória? Tudo isso, certamente, em níveis diferentes, constitui a nossa consciência. E pode a mente, que é resultado do tempo, mediante um processo de análise, chegar, passo a passo, a libertar-se da experiência acumulada? Ou é possível ficar-se inteiramente livre do tempo e contemplar-se diretamente a realidade? Vejamos. Isso lhes interessa? Esta questão, é realmente importante, pois é possível, como logo explicarei, ficarmos livres da experiência acumulada e, assim, renovarmos imediatamente a nossa vida, sem dependermos do tempo, recriar-nos de pronto, independentemente do tempo. Se isso lhes interessa, prosseguirei e verão.

Para ficarmos livres da experiência acumulada, dizem muitos analistas que devemos examinar cada reação, cada complexo, cada empecilho, cada obstáculo, o que necessariamente implica um processo de tempo; e significa, também, que o analista tem de compreender o que está analisando; e que não deve interpretar erroneamente aquilo que está analisando. Porque, se o interpretar falsamente, tal interpretação o levará a conclusões errôneas, com o que se constituirá um novo acervo mental. Percebem? Por consequência, o analista precisa ser capaz de analisar os seus pensamentos, sem o mais leve desvio; e não deve errar só um passo, na sua análise, porquanto, qualquer passo em falso, qualquer conclusão errônea, significa a formação de um novo fundo mental de desordem diferente e em nível diferente. E surge, também, o seguinte problema: Será o analista diferente da coisa analisada? Não representam o analista e a coisa analisada um fenômeno em conjunto? Senhor, não sei se isso lhe interessa, mas, em todo caso, continuarei. 

Indubitavelmente, o indivíduo que experimenta e a sua experiência constituem um fenômeno em conjunto, não são dois processos separados. Vejamos, pois, em primeiro lugar, a dificuldade de analisar. É quase impossível analisar tudo o que se contém em nossa consciência e ficar-se livre, por um tal processo. Porque, afinal de contas, quem é o analista? O analista não é diferente, embora o pense, da coisa analisada. Pode separar-se da coisa analisada, mas sempre faz parte dela. Tenho um pensamento, tenho um sentimento, sinto, por exemplo, cólera. A pessoa que analisa a cólera faz parte, ainda, da cólera; por conseguinte, o analista e a coisa analisada constituem um fenômeno conjunto, e não duas forças ou processos separados. Assim, pois, a dificuldade de nos analisarmos, de nos descerrarmos, de olharmos a nós mesmos, página por página, observando cada reação, cada resposta, é incalculável e exige muito tempo. Não concordam? Portanto, essa não é a maneira indicada para nos libertarmos do complexo de nossos sentimentos. Não é assim? Deve, portanto, haver uma maneira de proceder mais simples e direta; é o que vamos verificar. Mas, para verificarmos, precisamos abrir mão de tudo o que é falso. A análise, pois, não é o processo correto e devemos abandoná-la. Assim como não tomariam um caminho que não leva a parte alguma, assim também cumpre evitarem o processo da análise, que não lhes levará a parte alguma; ele está, por conseguinte, fora do sistema de vocês. 

Que lhes resta, então? Vocês estão habituados somente à análise, não é verdade? O observador que observa — sendo o observador e a coisa observada um fenômeno conjunto — o observador que observa e procura analisar a coisa observada, não conseguirá libertar-se do seu acervo mental. Se assim é — e de fato é — devem abandonar tal processo, não? Não sei se estão compreendendo tudo isso. Ao perceberem que tal método é falso, ao compreenderem, não apenas verbalmente, porém, realmente, que é falso esse processo, o que acontece, então, à análise de vocês? Desistem de analisar, não é verdade? E o que lhe resta então? Atente, senhor, para o que estou dizendo, segui-o, se lhe agrada, e verá com que rapidez um indivíduo pode libertar-se do seu acervo mental. Mas, se a análise não é o método correto, o que lhes resta ainda? Qual é o estado da mente habituada a analisar, pesquisar, perscrutar, dissecar, tirar conclusões, etc.? Se esse processo se detém, qual é o estado da mente de vocês? 

Vocês dizem que a mente fica vazia. Pois bem: continuem a penetrar nessa mente vazia. Por outras palavras, ao deitarem fora, como falso, o que é conhecido, o que acontece com a mente? Afinal de contas, o que foi que deitaram fora? Deitaram fora o falso processo resultante do acervo de ideias e experiências de vocês. Não é assim? De um só golpe, por assim dizer, lançaram fora tudo isso. Por conseguinte, a mente de vocês, depois de rejeitarem o processo analítico e tudo o que ele implica, e de o reconhecerem como falso, fica liberto do "ontem", sendo assim, capaz de observar diretamente, sem passar pelo processo do tempo, com o que se desfaz, imediatamente, do seu acervo de ideias e experiencias.

Senhor, formulemos diferentemente a questão: o pensamento é resultado do tempo, não é verdade? O pensamento é resultado do ambiente, de influências sociais e religiosas, e tudo isso faz parte do tempo. Pois bem: pode o pensamento ficar livre do tempo? Isto é, o pensamento, que é resultado do tempo, pode parar e ficar livre do processo do tempo? O pensamento pode ser controlado, modelado; mas o controle do pensamento está ainda compreendido nos domínios do tempo, e, por isso, a nossa dificuldade é a seguinte: Como pode uma mente, que é resultado do tempo, de milhares de dias passados, livre, instantaneamente, desse complexo acervo de influências? E a verdade é que vocês podem se libertar de tal acervo, não amanhã, porém, no presente, no agora. Isso só é possível ao perceberem aquilo que é falso; e o falso é, obviamente, o processo analítico, e este é a única coisa que temos. Cessando de todo o processo analítico, não mediante compulsão, porém pela compreensão da inevitável falsidade desse processo, verão então que a mente de vocês ficará completamente dissociada do passado — o que não significa que deixarão de reconhecer o passado, porém, que a mente de vocês não terá mais comunhão direta com o passado. Pode, portanto, a mente libertar-se, imediatamente, do passado, e essa dissociação do passado, essa completa libertação do ontem — psicologicamente e não cronologicamente — é possível, e essa é a única maneira de se compreender a realidade. 

Agora, expressando-o de maneira muito simples; quando desejam compreender uma coisa, qual é o estado da mente de vocês? Quando desejam compreender seu filho, quando desejam compreender alguém, ou alguma coisa, qual é o estado da mente de vocês? Não ficam analisando, criticando, julgando o que o outro está dizendo, ficam apenas escutando, não é verdade? A mente de vocês se acha num estado em que o processo do pensamento está inativo, porém muito atento. É exato isso? E essa atenção não se relaciona com o tempo. O que estão é, simplesmente, alertados, passivamente receptivos, mas ao mesmo tempo plenamente atentos; e é só nesse estado que há compreensão. Naturalmente, quando a mente está agitada, interrogando, afligindo-se, dissecando, analisando, não há compreensão. E quando há o desejo ardente de compreender, a mente está evidentemente tranquila. Isto naturalmente vocês terão que experimentar, e não devem aceitá-lo somente porque estou dizendo. Mas é fácil verificar que quanto mais analisam, tanto menos compreendem. Podem compreender certos fatos, certas experiências; mas não é possível esvaziar a consciência de todo o seu conteúdo, por meio do processo analítico. Só é possível isso ao perceberem a falsidade do método analítico. Ao reconhecerem o falso como falso, começarão a ver o que é verdadeiro; e a verdade é que os libertará das influências do passado. Para receber essa verdade, deve a mente desistir de ser analítica, não deve ficar presa ao processo do pensamento, que, evidentemente, é análise, o que nos conduz a outra questão inteiramente diferente, ou seja: O que é meditação correta? — da qual trataremos noutra ocasião. 

Jiddu Krishnamurti — O que te fará feliz? 
23 de janeiro de 1949

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